Era quase meio-dia. Na ampla Rua El Azhar, transbordando duma multidão colorida e despreocupada, Gohar voltou a deparar com a plenitude. Era aquele o seu universo familiar, no seio desta multidão indolente, espraiando-se assim pelos passeios ou pela calçada, e isto apesar do intenso tráfego dos automóveis, dos fiacres, das carroças, e até dos eléctricos que passavam com a velocidade de bólides assassinos. O brando sol do Inverno vertia o seu benfazejo calor por sobre este fervilhar inextricável.
Milhafres pairavam nas alturas, mergulhavam sobre a multidão, logo retomando o voo com um naco de carne podre no bico; ninguém dava sequer pelas sábias manobras de tais aves. Grupos de mulheres paravam diante das lojas de tecidos; asperamente discutiam horas a fio para comprar coisas como lenços estampados. Miúdos divertiam-se enfurecendo os condutores de veículos, pondo-se de propósito ali no meio da rua, a atrapalhar. Os condutores lançavam pragas, amaldiçoando-os a eles mais às mães que ali não estavam,e acabavam por esborrachar uns quantos.
De dentro de todos os cafés ladeando as ruas, aparelhos de rádio difundiam a mesma voz lamurienta dum cantor em voga. E lúgrebe coisa era a música que lhe servia de acompanhamento, quanto às letras, lá iam penosamente dando conta de desgraças e lamentos dum amor contrariado. Gohar lembrou-se do vizinho morto, da gritaria das carpideiras, e estugou o passo. Mas não havia meio de fugir desta voz enlutada, ela estava em toda a parte, dominando o tumultuar da rua.
Gohar parou instintivamente, como se pressentisse uma zona de brandura, a promessa duma deliciosa alegria por entre o confuso rumor ambiente. Diante duma loja vazia viu um homem de certa idade, de roupa cuidada, dignamente sentado numa cadeira, olhando passar a multidão com um ar nobre e de despego. O homem tinha uma atitude majestosa extraordinariamente surpreendente…
"Mendigos e altivos - Albert Cossery"
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
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